19 de mai. de 2010


"Ainda que dentro de mim as águas apodreçam e se encham de lama e ventos ocasionais depositem peixes mortos pelas margens e todos os avisos se façam presentes nas asas das borboletas e nas folhas dos plátanos que devem estar perdendo folhas lá bem ao sul e ainda que você me sacuda e diga que me ama e que precisa de mim: ainda assim não sentirei o cheiro podre das águas e meus pés não se sujarão na lama e meus olhos não verão as carcaças entreabertas em vermes nas margens, ainda assim eu matarei as borboletas e cuspirei nas folhas amareladas dos plátanos e afastarei você com o gesto mais duro que conseguir e direi duramente que seu amor não me toca nem me comove e que sua precisão de mim não passa de fome e que você me devoraria como eu devoraria você, ah, se ousássemos." ( Caio F. Abreu )

15 de mai. de 2010

"Espero alegre a saída e espero nunca voltar."
(Frida Kahlo)

"Incapaz de sentir mais do que raiva e humilhação, ela continuou andando. Foi até o táxi e, com os olhos ainda incertos de se deveriam ou não lacrimejar, revelou seu destino. O céu não era possível, mas certificou-se de reservar a poltrona número 1 do ônibus, quando chegou à rodoviária. Pensou em ser a primeira a sentir o impacto caso algum acidente ocorresse. Queria ser a primeira. Queria que algum acidente ocorresse. Foi até a banca de jornais e procurou revistas específicas sobre seu trabalho, não tinha estômago para a alegria alheia estampada em páginas enormes. Comprou mais do que necessitava, pagou mais do que podia. Era sempre assim. Esperou o onibus sem nem ao menos conseguir retirar os periódicos da sacola. Seus olhos, cobertos por seu ray ban, não revelavam emoções agora. Sentou-se na poltrona e tentou perdoar-se por estar ali, por ter acreditado, por ter querido. O sono veio e ela cedeu. Acordou com o telefone tocando. Foi para casa. E mais do que nunca lembrou de tudo o que tinha a provar a tanta gente. Agradeceu por não sentir raiva ou qualquer outra coisa parecida, na verdade não sentia nada. Dormiu acreditando estar curada dessas dores de amor. Não sabia que quando as dores cessam o coração seca, e o sangue pára de circular.Nao acordou pra comprovar. "

9 de mai. de 2010


"...O hábito tem-lhe amortecido as quedas. Mas sentindo menos dor, perdeu a vantagem da dor como aviso e sintonia. Hoje em dia vive incomparavelmente mais sereno, porém em grande perigo de vida: pode estar a um passo de estar morrendo, a um passo de já ter morrido, e sem o benefício de seu próprio aviso prévio...." (Clarice Lispector)